Desencantos

 


 

Texto-fonte:

Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria,

São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

Publicado originalmente por Paula Brito, Rio de Janeiro, 1861.

 

 

 

 

 

Fantasia Dramática

 

A

Quintino Bocaiúva

 

 

 

 

PERSONAGENS

 

CLARA DE SOUZA

LUÍS DE MELO

PEDRO ALVES

 

 

 

PRIMEIRA PARTE

 

Em Petrópolis

(Um jardim. Terraço no fundo.)

 

 

 

Cena I

 

CLARA, LUÍS DE MELO

 

CLARA

 

Custa a crer o que me diz. Pois, deveras, saiu aborrecido do baile?

 

LUÍS

 

É verdade.

 

CLARA

 

Dizem entretanto que esteve animado...

 

LUÍS

 

Esplêndido!

 

CLARA

 

Esplêndido, sim!

 

LUÍS

 

Maravilhoso!

 

CLARA

 

Essa é pelo menos a opinião geral. Se eu lá fosse, estou certa de que seria a minha.

 

LUÍS

 

Pois eu lá fui e não é essa a minha opinião.

 

CLARA

 

É difícil de contentar nesse caso.

 

LUÍS

 

Oh! não.

 

CLARA

 

Então as suas palavras são um verdadeiro enigma.

 

LUÍS

 

Enigma de fácil decifração.

 

CLARA

 

Nem tanto.

 

LUÍS

 

Quando se dá preferência a uma flor, à violeta, por exemplo, todo o jardim onde ela não apareça, embora esplêndido, é sempre incompleto. 

 

CLARA

 

Faltava então uma violeta nesse jardim? 

 

LUÍS

 

Faltava. Compreende agora?

 

CLARA

 

Um pouco

 

LUÍS

 

Ainda bem!

 

CLARA

 

Venha sentar-se neste banco de relva, à sombra desta árvore copada. Nada lhe falta para compor um idílio, já que é dado a esse gênero de poesia. Tinha então muito interesse em ver lá essa flor?

 

LUÍS

 

Tinha. Com a mão na consciência, falo-lhe a verdade; essa flor não é uma predileção do espírito, é uma escolha do coração.

 

CLARA

 

Veja que se trata de uma paixão. Agora compreendo a razão por que não lhe agradou o baile, e o que era enigma, passa a ser a coisa mais natural do mundo. Está absolvido do seu delito.

 

LUÍS

 

Bem vê que tenho circunstâncias atenuantes a meu favor.

 

CLARA

 

Então o Senhor ama?

 

LUÍS

 

Loucamente, e como se pode amar aos vinte e dois anos, com todo o ardor de um coração cheio de vida. Na minha idade o amor é uma preocupação exclusiva, que se apodera do coração e da cabeça. Experimentar outro sentimento, que não seja esse, pensar em outra coisa, que não seja o objeto escolhido pelo coração, é impossível. Desculpe se lhe falo assim...

 

CLARA

 

Pode continuar. Fala com um entusiasmo tal, que me fez parecer estar ouvindo algumas das estrofes do nosso apaixonado Gonzaga.

 

LUÍS

 

O entusiasmo do amor é porventura o mais vivo e ardente.

 

CLARA

 

E por isso o menos duradouro. É como a palha que se inflama com intensidade, mas que se apaga logo depois.

 

LUÍS

 

Não aceito a comparação. Pois Deus havia de inspirar ao homem esse sentimento, tão suscetível de morrer assim? Demais, a prática mostra o contrário.

 

CLARA

 

Já sei. Vem falar-me de Heloísa e Abelardo, Píramo e Tisbe, e quanto exemplo a história e a fábula nos dão. Esses não provam. Mesmo porque são exemplos raros, é que a história os aponta. Fogo de palha, fogo de palha e nada mais.

 

LUÍS

 

Pesa-me que de seus lábios saiam essas palavras.

 

CLARA

 

Por quê?

 

LUÍS

 

Porque eu não posso admitir a mulher sem os grandes entusiasmos do coração. Chamou-me há pouco de poeta; com efeito eu assemelho-me por esse lado aos filhos queridos das musas. Esses imaginam a mulher um ente intermediário que separa os homens dos anjos e querem-na participante das boas qualidades de uns e de outros. Dir-me-á que se eu fosse agiota não pensaria assim; eu responderei que não são os agiotas os que têm razão neste mundo.

 

CLARA

 

Isso é que é ver as coisas através de um vidro de cor. Diga-me: sente deveras o que diz a respeito do amor, ou está fazendo uma profissão de fé de homem político?

 

LUÍS

 

Penso e sinto assim.

 

CLARA

 

Dentro de pouco tempo verá que tenho razão.

 

LUÍS

 

Razão de quê?

 

CLARA

 

Razão de chamar fogo de palha ao fogo que lhe devora o coração.

 

LUÍS

 

Espero em Deus que não.

 

CLARA

 

Creia que sim.

 

LUÍS

 

Falou-me há pouco em fazer um idílio, e eu estou com desejos de compor uma ode sáfica.

 

CLARA

 

A que respeito?

 

LUÍS

 

Respeito à crueldade das violetas.

 

CLARA

 

E depois ia atirar-se à torrente do Itamaraty? Ah! Como anda atrasado do seu século!

 

LUÍS

 

Ou adiantado...

 

CLARA

 

Adiantado, não creio. Voltaremos nós à simplicidade antiga?

 

LUÍS

 

Oh! Tinha razão aquela pobre poetisa de Lesbos em atirar-se às ondas. Encontrou na morte o esquecimento das suas dores íntimas. De que lhe servia viver amando sem esperança?

 

CLARA

 

Dou-lhe de conselho que perca esse entusiasmo pela Antigüidade. A poesia de Lesbos quis figurar na história com uma face melancólica; atirou-se de Leucate. Foi cálculo e não virtude.

 

LUÍS

 

Está pecando, minha senhora.

 

CLARA

 

Por blasfemar do seu ídolo?

 

LUÍS

 

Por blasfemar de si. Uma mulher nas condições da décima musa nunca obra por cálculo. E V. Exa., por mais que [não] queira, deve estar nas mesmas condições de sensibilidade, que a poetisa antiga, bem como está nas de beleza.

 

 

 

Cena II

 

LUÍS DE MELO, CLARA, PEDRO ALVES

 

PEDRO ALVES

 

Boa tarde, minha interessante vizinha. Sr. Luís de Melo!

 

CLARA

 

Faltava o primeiro folgazão de Petrópolis, a flor da emigração!

 

PEDRO ALVES

 

Nem tanto assim.

 

CLARA

 

Estou encantada por ver assim a meu lado os meus dois vizinhos, o da direita e o da esquerda.

 

PEDRO ALVES

 

Estavam conversando? Era segredo?

 

CLARA

 

Oh! não. O Sr. Luís de Melo fazia-se um curso de história depois de ter feito outro de botânica. Mostrava-me a sua estima pela violeta e pela Safo.

 

PEDRO ALVES

 

E que dizia a respeito de uma e de outra?

 

CLARA

 

Erguia-as às nuvens. Dizia que não considerava jardim sem violeta, e quanto ao salto de Leucate, batia palmas com verdadeiro entusiasmo.

 

PEDRO ALVES

 

E ocupava V. Exa. com essas coisas? Duas questões banais. Uma não tem valor moral, outra não tem valor atual.

 

LUÍS

 

Perdão, o senhor chegava quando eu ia concluir o meu curso botânico e histórico. Ia dizer que também detesto as parasitas de todo o gênero, e que tenho asco aos histriões de Atenas. Terão estas duas questões valor moral e atual?

 

PEDRO ALVES

 

(enfiado)

 

Confesso que não compreendo.

 

CLARA

 

Diga-me, Sr. Pedro Alves: foi à partida de ontem à noite?

 

PEDRO ALVES

 

Fui, minha senhora.

 

CLARA

 

Divertiu-se?

 

PEDRO ALVES

 

Muito. Dancei e joguei a fartar, e quanto a doces, não enfardei mal o estômago. Foi uma deslumbrante função. Ah! notei que não estava lá.

 

CLARA

 

Uma maldita enxaqueca reteve-me em casa.

 

PEDRO ALVES

 

Maldita enxaqueca!

 

CLARA

 

Consola-me a idéia de que não fiz falta.

 

PEDRO ALVES

 

Como? Não fez falta?

 

CLARA

 

Cuido que todos seguiram o seu exemplo e que dançaram e jogaram a fartar, não enfardando mal o estômago, quanto a doces.

 

PEDRO ALVES

 

Deu um sentido demasiado literal às minhas palavras.

 

CLARA

 

Pois não foi isso que me disse?

 

PEDRO ALVES

 

Mas eu queria dizer outra coisa.

 

CLARA

 

Ah! Isso é outro caso. Entretanto acho que é dado a qualquer divertir-se ou não num baile, e por conseqüência dizê-lo.

 

PEDRO ALVES

 

A qualquer, D. Clara!

 

CLARA

 

Aqui está o nosso vizinho que acaba de me dizer que se aborreceu no baile...

 

PEDRO ALVES

 

(consigo)

 

Ah!(alto) De fato, eu o vi entrar e sair pouco depois com ar assustadiço e penalizado.

 

LUÍS

 

Tinha de ir tomar chá em casa de um amigo e não podia faltar.

 

PEDRO ALVES

 

Ah! foi tomar chá. Entretanto correram certos boatos depois que o senhor saiu.

 

LUÍS

 

Boatos?

 

PEDRO ALVES 

 

É verdade. Houve quem se lembrasse de dizer que o senhor saíra logo por não ter encontrado da parte de uma dama que lá estava o acolhimento que esperava.

 

CLARA

 

(olhando para Luís)

 

Ah!

 

LUÍS

 

Oh! isso é completamente falso. Os maldizentes estão por toda parte, mesmo nos bailes; e desta vez não houve tino na escolha dos convidados.

 

PEDRO ALVES

 

Também é verdade. (baixo a Clara) Recebeu o meu bilhete?

 

CLARA

 

(depois de um olhar)

 

Como é bonito o pôr-do-sol! Vejam que magnífico espetáculo!

 

LUÍS

 

É realmente encantador!

 

PEDRO ALVES

 

Não é feio; tem mesmo alguma coisa de grandioso. (vão ao terraço)

 

LUÍS

 

Que colorido e que luz!

 

CLARA

 

Acho que os poetas têm razão em celebrarem esta hora final do dia!

 

LUÍS

 

Minha senhora, os poetas têm sempre razão. E quem não se extasiará diante deste quadro?

 

CLARA

 

Ah!

 

LUÍS E PEDRO ALVES

 

O que é?

 

CLARA

 

É o meu leque que caiu! Vou mandar apanhá-lo.

 

PEDRO ALVES

 

Como apanhar? Vou eu mesmo.

 

CLARA

 

Ora, tinha que ver! Vamos para a sala e eu mandarei buscá-lo.

 

PEDRO ALVES

 

Menos isso. Deixe-me a glória de trazer-lhe o leque.

 

LUÍS

 

Se consente, eu faço concorrência ao desejo do Sr. Pedro Alves...

 

CLARA

 

Mas então apostaram-se?

 

LUÍS

 

Mas se isso é um desejo de nós ambos. Decida.

 

PEDRO ALVES

 

Então o senhor quer ir?

 

LUÍS

 

(a Pedro Alves)

 

Não vê que espero a decisão?

 

PEDRO ALVES

 

Mas a idéia é minha. Entretanto, Deus me livre de dar-lhe motivo de queixa, pode ir.

 

LUÍS

 

Não espero mais nada.

 

 

 

Cena III

 

PEDRO ALVES, CLARA

 

PEDRO ALVES

 

Este nosso vizinho tem uns ares de superior que me desagradam. Pensa que não compreendi a alusão da parasita e dos histriões? O que não me fazia conta era desrespeitar a presença de V. Exa., mas não faltam ocasiões para castigar um insolente.

 

CLARA

 

Não lhe acho razão para falar assim. O Sr. Luis de Melo é um moço de maneiras delicadas e está longe de ofender a quem quer que seja, muito menos a uma pessoa que eu considero...

 

PEDRO ALVES

 

Acha?

 

CLARA

 

Acho sim.

 

PEDRO ALVES

 

Pois eu não. São modos de ver. Tal seja o ponto de vista em que V. Exa. se coloca... Cá o meu olhar apanha-o em cheio e diz-me que ele merece bem uma lição.

 

CLARA 

 

Que espírito belicoso é esse?

 

PEDRO ALVES

 

Este espírito belicoso é o ciúme. Eu sinto ter por concorrente a este vizinho que se antecipa a visitá-la, e a quem V. Exa. dá tanta atenção.

 

CLARA

 

Ciúme!

 

PEDRO ALVES

 

Ciúme, sim. O que me respondeu V. Exa. à pergunta que lhe fiz sobre o meu bilhete? Nada, absolutamente nada. Talvez nem o lesse; entretanto eu pintava-lhe nele o estado do meu coração, mostrava-lhe os sentimentos que me agitam, fazia-lhe uma autópsia, era uma autópsia, que eu lhe fazia de meu coração. Pobre coração! Tão mal pago dos seus extremos, e entretanto tão pertinaz em amar!

 

CLARA 

 

Parece-me bem apaixonado. Devo considerar-me feliz por ter perturbado a quietação do seu espírito. Mas a sinceridade nem sempre é companheira da paixão.

 

PEDRO ALVES

 

Raro se aliam é verdade, mas desta vez é assim. A paixão que eu sinto é sincera, e pesa-me que meus avós não tivessem uma espada pra eu sobre ela jurar...

 

CLARA

 

Isso é mais uma arma de galantaria que um testemunho de verdade. Deixe antes que o tempo ponha em relevo os seus sentimentos.

 

PEDRO ALVES

 

O tempo! Há tanto que me diz isso! Entretanto continua o vulcão em meu peito e só pode ser apagado pelo orvalho do seu amor.

 

CLARA

 

Estamos em pleno outeiro. As suas palavras parecem um mote glosado em prosa. Ah ! a sinceridade não está nessas frases gastas e ocas.

 

PEDRO ALVES

 

O meu bilhete, entretanto, é concebido em frases bem tocantes e simples.

 

CLARA

 

Com franqueza, eu não li o bilhete.

 

PEDRO ALVES

 

Deveras?

 

CLARA

 

Deveras.

 

PEDRO ALVES

 

(tomando o chapéu)

 

Com licença.

 

CLARA

          

Onde vai? Não compreende que quando digo que não li o seu bilhete é porque quero ouvir da sua própria boca as palavras que nele se continham?

 

PEDRO ALVES

 

Como? Será por isso?

 

CLARA

 

Não acredita?

 

PEDRO ALVES

 

É capricho de moça bonita e nada mais. Capricho sem exemplo.

 

CLARA

 

Dizia-me então?...

 

PEDRO ALVES

 

Dizia-lhe que, com o espírito vacilante como baixel prestes a soçobrar, eu lhe escrevia à luz do relâmpago que me fuzila n’alma aclarando as trevas que uma desgraçada paixão aí me deixa. Pedia-lhe a luz dos seus olhos sedutores para servir de guia na vida e poder encontrar sem perigo o porto de salvamento. Tal é no seu espírito a segunda edição de minha carta. As cores que nela empreguei são a fiel tradução do que sentia e sinto. Está pensativa?

 

CLARA

 

Penso em que, se me fala verdade, a sua paixão é rara e nova para estes tempos.

 

PEDRO ALVES

 

Rara e muito rara; pensa que eu sou lá desses que procuram vencer pelas palavras melífluas e falsas? Sou rude, mas sincero.

 

CLARA

 

Apelemos para o tempo.

 

PEDRO ALVES

 

É um juiz tardio. Quando a sua sentença chegar, eu estarei no túmulo e será tarde.

 

CLARA

 

Vem agora com idéias fúnebres!

 

PEDRO ALVES

 

Eu não apelo para o tempo. O meu juiz está em face de mim, e eu quero já beijar antecipadamente a mão que há de lavrar a minha sentença de absolvição. (quer beijar-lhe a mão. Clara sai) Ouça! Ouça!

 

 

 

Cena IV

 

LUÍS DE MELO, PEDRO ALVES

 

PEDRO ALVES

 

()

 

Fugiu! Não tarda ceder. Ah! o meu adversário!

 

LUÍS

 

D. Clara?

 

PEDRO ALVES

 

Foi para outra parte do jardim.

 

LUÍS

 

Bom. (vai sair)

 

PEDRO ALVES

 

Disse-me que o fizesse esperar; e eu estimo bem estarmos a sós porque tenho de lhe dizer algumas palavras.

 

LUÍS

 

Às ordens. Posso ser-lhe útil?

 

PEDRO ALVES

 

Útil a mim e a si. Eu gosto das situações claras e definidas. Quero poder dirigir a salvo e seguro o meu ataque. Se lhe falo deste modo é porque, simpatizando com as suas maneiras, desejo não trair a uma pessoa a quem me ligo por um vínculo secreto. Vamos ao caso: é preciso que me diga quais as suas intenções, qual o seu plano de guerra; assim, cada um pode atacar por seu lado a praça, e o triunfo será do que melhor tiver empregado os seus tiros.

 

LUÍS

 

A que vem essa belicosa parábola?

 

PEDRO ALVES

 

Não compreende.

 

LUÍS

 

Tenha a bondade de ser mais claro.

 

PEDRO ALVES

 

Mais claro ainda? Pois serei claríssimo: a viúva do coronel é uma praça sitiada.

 

LUÍS

 

Por quem?

 

PEDRO ALVES

 

Por mim, confesso. E afirmo que por nós ambos.

 

LUÍS

 

Informaram-no mal. Eu não faço a corte à viúva do coronel.

 

PEDRO ALVES

 

Creio em tudo quanto quiser, menos nisso.

 

LUÍS

 

A sua simpatia por mim vai até desmentir as minhas asserções?

 

PEDRO ALVES

 

Isso não é discutir. Deveras, não faz corte à nossa interessante vizinha?

 

LUÍS

 

Não, as minhas atenções para com ela não passam de uma retribuição a que, como homem delicado, não me poderia furtar.

 

PEDRO ALVES

 

Pois eu faço.

 

LUÍS

 

Seja-lhe para bem! Mas a que vem isso?

 

PEDRO ALVES

 

A coisa alguma. Desde que me afiança não ter a menor intenção oculta nas suas atenções, a explicação está dada. Quanto a mim, faço-lhe a corte e digo-o bem alto. Apresento-me candidato no seu coração e para isso mostro títulos valiosos. Dirão que sou presumido; podem dizer o que quiser.

 

LUÍS

 

Desculpe a curiosidade: quais são esses títulos?

 

PEDRO ALVES

 

A posição que a fortuna me dá, um físico que pode-se chamar belo, uma coragem capaz de afrontar todos os muros e grades possíveis e imagináveis, e para coroar a obra uma discrição de pedreiro-livre.

 

LUÍS

 

Só?

 

PEDRO ALVES

 

Acha pouco?

 

LUÍS

 

Acho.

 

PEDRO ALVES

 

Não compreendo que haja precisão de mais títulos além destes.

 

LUÍS

 

Pois há. Essa posição, esse físico, essa coragem e essa discrição, são decerto apreciáveis, mas duvido que tenham valor diante de uma mulher de espírito.

 

PEDRO ALVES

 

Se a mulher de espírito for da sua opinião.

 

LUÍS

 

Sem dúvida alguma que há de ser.

 

PEDRO ALVES

 

Mas continue, quero ouvir o fim de seu discurso.

 

LUÍS

 

Onde fica no seu plano de guerra, já que aprecia este gênero de figura, onde fica, digo eu, o amor verdadeiro, a dedicação sincera, o respeito, filho de ambos, e que essa D. Clara sitiada deve inspirar?

 

PEDRO ALVES

 

A corda em que acaba de tocar está desafinada há muito tempo e não dá som. O amor, o respeito, e a dedicação! Se o não conhecesse diria que o senhor acaba de chegar do outro mundo.

 

LUÍS

 

Com efeito, pertenço a um mundo que não é absolutamente o seu. Não vê que tenho um ar de quem não está em terra própria e fala com uma variedade da espécie?

 

PEDRO ALVES

 

Já sei; pertence à esfera dos sonhadores e dos visionários. Conheço boa soma de seus semelhantes que me tem dado bem boas horas de riso e de satisfação. É uma tribo que se não acaba, pelo que vejo?

 

LUÍS

 

Ao que parece, não?

 

PEDRO ALVES

 

Mas é evidente que perecerá.

 

LUÍS

 

Não sei. Se eu quisesse concorrer ao bloqueio da praça em questão, era azada ocasião para julgarmos do esforço recíproco e vermos até que ponto a ascendência do elemento positivo exclui a influência do elemento ideal.

 

PEDRO ALVES

 

Pois experimente.

 

LUÍS

 

Não; disse-lhe já que respeito muito a viúva do coronel e estou longe de sentir por ela a paixão do amor.

 

PEDRO ALVES

 

Tanto melhor. Sempre é bom não ter pretendentes para combater. Ficamos amigos, não?

 

LUÍS

 

Decerto.

 

PEDRO ALVES

 

Se eu vencer o que dirá?

 

LUÍS

 

Direi que há certos casos em que com toda a satisfação se pode ser padrasto e direi que esse é o seu caso.

 

PEDRO ALVES

 

Oh! se a Clarinha não tiver outro padrasto senão eu...

 

 

 

Cena V

 

PEDRO ALVES, LUÍS, D. CLARA

 

CLARA

 

Estimo bem vê-los juntos.

 

PEDRO ALVES

 

Discutíamos.

 

LUÍS

 

Aqui tem o seu leque; está intacto.

 

CLARA

 

Meu Deus, que trabalho que foi tomar. Agradeço-lhe do íntimo. É uma prenda que tenho em grande conta; foi-me dado por minha irmã Matilde, em dia de anos meus. Mas tenha cuidado; não aumente tanto a lista das minhas obrigações; a dívida pode engrossar e eu não terei por fim com que solvê-la.

 

LUÍS

 

De que dívida me fala? A dívida aqui é minha, dívida perene, que eu mal amortizo por uma gratidão sem limite. Posso eu pagá-la nunca?

 

CLARA

 

Pagar o quê?

 

LUÍS

 

Pagar essas horas de felicidade calma que a sua graciosa urbanidade me dá e que constituem os meus fios de ouro no tecido da vida.

 

PEDRO ALVES

 

Reclamo a minha parte nessa ventura.

 

CLARA

 

Meu Deus, declaram-se em justa? Não vejo senão quebrarem lanças em meu favor. Cavalheiros, ânimo, a liça está aberta, e a castelã espera o reclamo do vencedor.

 

LUÍS

 

Oh! a castelã pode quebrar o encanto do vencedor desamparando a galeria e deixando-o só com as feridas abertas no combate.

 

CLARA

 

Tão pouca fé o anima?

 

LUÍS

 

Não é a fé das pessoas que me falta, mas a fé da fortuna. Fui sempre tão mal-aventurado que nem tento acreditar por um momento na boa sorte.

 

CLARA

 

Isso não é natural num cavalheiro cristão.

 

LUÍS

 

O cavalheiro cristão está prestes a mourar.

 

CLARA

 

Oh!

 

LUÍS

 

O sol do Oriente aquece os corações, ao passo que o de Petrópolis esfria-os.

 

CLARA

 

Estude antes o fenômeno e não vá sacrificar a sua consciência. Mas, na realidade, tem sempre encontrado a derrota nas suas pelejas?

 

LUÍS

 

A derrota foi sempre a sorte das minhas armas. Será que elas sejam mal temperadas? Será que eu não as maneje bem? Não sei.

 

PEDRO ALVES

 

É talvez uma e outra coisa.

 

LUÍS

 

Também pode ser.

 

CLARA

 

Duvido.

 

PEDRO ALVES

 

Duvida?

 

CLARA

 

E sabe quais são as vantagens de seus vencedores?

 

LUÍS

 

Demais até.

 

CLARA

 

Procure alcançá-las.

 

LUÍS 

 

Menos isso. Quando dois adversários se medem, as mais das vezes o vencedor e sempre aquele, que à elevada qualidade de tolo reúne uma sofrível dose de presunção. A esse, as palmas da vitória, a esse a boa fortuna da guerra: quer que o imite?

 

CLARA

 

Disse — as mais das vezes — confessa, pois, que há exceções.

 

LUÍS

 

Fora absurdo negá-las, mas declaro que nunca as encontrei.

 

CLARA

 

Não deve desesperar, porque a fortuna aparece quando menos se conta com ela.

 

LUÍS

 

Mas aparece às vezes tarde. Chega quando a porta está cerrada e tudo que nos cerca é silencioso e triste. Então a peregrina demorada entra como uma amiga consoladora, mas sem os entusiasmos do coração.

 

CLARA

 

Sabe o que o perde? É a fantasia.

 

LUÍS

 

A fantasia?

 

CLARA

 

Não lhe disse há pouco que o senhor via as coisas através de um vidro de cor? É o óculo da fantasia, óculo brilhante, mas mentiroso, que transtorna o aspecto do panorama social, e que faz vê-lo pior do que é, para dar-lhe um remédio melhor do que pode ser.

 

PEDRO ALVES 

 

Bravo! Deixe-me, V. Exa., beijar-lhe a mão.

 

CLARA

 

Por quê?

 

PEDRO ALVES

 

Pela lição que acaba de dar ao Sr. Luís de Melo.

 

CLARA

 

Ah! por que o acusei de visionário? O nosso vizinho carece de quem lhe fale assim. Perder-se-á se continuar a viver no mundo abstrato das suas teorias platônicas.

 

PEDRO ALVES

 

Ou por outra, e mais positivamente, V. Exa. mostrou-lhe que acabou o reinado das baladas e da pasmaceira para dar lugar ao império dos homens de juízo e dos espíritos sólidos.

 

LUÍS

 

V. Exa. toma então o partido que me é adverso?

 

CLARA

 

Eu não tomo partido nenhum.

 

LUÍS

 

Entretanto, abriu brecha aos assaltos do Sr. Pedro Alves, que se compraz em mostrar-se espírito sólido e homem de juízo.

 

PEDRO ALVES

 

E de muito juízo. Pensa que eu adoto o seu sistema de fantasia, e por assim dizer, de choradeira? Nada, o meu sistema é absolutamente oposto; emprego os meios bruscos por serem os que estão de acordo com o verdadeiro sentimento. Os da minha têmpera são assim.

 

LUÍS

 

E o caso é que são felizes.

 

PEDRO ALVES

 

Muito felizes. Temos boas armas e manejamo-las bem. Chame a isso toleima e presunção, pouco nos importa; é preciso que os vencidos tenham um desafogo.

 

CLARA

 

(a Luis de Melo)

 

O que diz a isto?

 

LUÍS

 

Digo que estou muito fora do meu século. O que fazer contra adversários que se contam em grande número, número infinito, a admitir a versão dos livros santos?

 

CLARA

 

Mas, realmente, não vejo que pudesse responder com vantagem.

 

LUÍS

 

E V. Exa. sanciona a teoria contrária?

 

CLARA

 

A castelã não sanciona, anima os lidadores.

 

LUÍS

 

Animação negativa para mim. V. Exa. dá-me licença?

 

CLARA

 

Onde vai?

 

LUÍS 

 

Tenho uma pessoa que me espera em casa. V. Exa. janta às seis, o meu relógio marca cinco. Dá-me este primeiro quarto de hora?

 

CLARA

 

Com pesar, mas não quero tolhê-lo. Não falte.

 

LUÍS

 

Volto já.

 

 

 

Cena VI

 

CLARA, PEDRO ALVES

 

PEDRO ALVES

 

Estou contentíssimo.

 

CLARA

 

Por quê?

 

PEDRO ALVES

 

Porque lhe demos uma lição.

 

CLARA

 

Ora, não seja mau!

 

PEDRO ALVES

 

Mau! Eu sou bom até demais. Não vê como ele me provoca a cada instante?

 

CLARA

 

Mas, quer que lhe diga uma coisa? É preciso acabar com essas provocações contínuas.

 

PEDRO ALVES

 

Pela minha parte, nada há; sabe que sou sempre procurado na minha gruta. Ora, não se toca impunemente no leão...

 

CLARA

 

Pois seja leão até a última, seja magnânimo.

 

PEDRO ALVES

 

Leão apaixonado e magnânimo? Se fosse por mim só, não duvidaria perdoar. Mas diante de V. Exa., por quem tenho presa a alma, é virtude superior às minhas forças. E, entretanto, V. Exa. obstina-se em achar-se razão.

 

CLARA

 

Nem sempre.

 

PEDRO ALVES

 

Mas vejamos, não é exigência minha, mas eu desejo, imploro, uma decisão definitiva da minha sorte. Quando se ama como eu amo, todo o paliativo é uma tortura que se não pode sofrer!

 

CLARA

 

Com que fogo se exprime! Que ardor, que entusiasmo!

 

PEDRO ALVES

 

É sempre assim. Zombeteira!

 

CLARA

 

Mas o que quer então?

 

PEDRO ALVES

 

Franqueza.

 

CLARA

 

Mesmo contra os seus interesses?

 

PEDRO ALVES

 

Mesmo... contra tudo.

 

CLARA

 

Reflita: prefere à dubiedade da situação, uma declaração franca que lhe vá destruir as suas mais queridas ilusões?

 

PEDRO ALVES

 

Prefiro isso a não saber se sou amado ou não.

 

CLARA

 

Admiro a sua força d’alma.

 

PEDRO ALVES

 

Eu sou o primeiro a admirar-me.

 

CLARA

 

Desesperou alguma vez da sorte?

 

PEDRO ALVES

 

Nunca.

 

CLARA

 

Pois continue a confiar nela.

 

PEDRO ALVES

 

Até quando?

 

CLARA

 

Até um dia.

 

PEDRO ALVES

 

Que nunca há de chegar.

 

CLARA

 

Que está... muito breve.

 

PEDRO ALVES

 

Oh! meu Deus!

 

CLARA

 

Admirou-se?

 

PEDRO ALVES

 

Assusto-me com a idéia da felicidade. Deixe-me beijar a sua mão?

 

CLARA

 

A minha mão vale bem dois meses de espera e receio; não vale?

 

PEDRO ALVES

 

(enfiado)

 

Vale.

 

CLARA

 

(sem reparar)

 

Pode beijá-la! É o penhor dos esponsais.

 

PEDRO ALVES

 

(consigo)

 

Fui longe demais! (alto, beijando a mão de Clara) Este é o mais belo dia de minha vida!

 

 

 

Cena VII

 

CLARA, PEDRO ALVES, LUÍS

 

LUÍS

 

(entrando)

 

Ah!...

 

PEDRO ALVES

 

Chegou a propósito.

 

CLARA

 

Dou-lhe parte do meu casamento com o Sr. Pedro Alves.

 

PEDRO ALVES

 

O mais breve possível.

 

LUÍS

 

Os meus parabéns a ambos.

 

CLARA

 

A resolução foi um pouco súbita, mas nem por isso deixa de ser refletida.

 

LUÍS

 

Súbita, decerto, porque eu não contava com uma semelhante declaração neste momento. Quando são os desposórios?

 

CLARA

 

Pelos fins do verão, não, meu amigo?

 

PEDRO ALVES

 

(com importância)

 

Sim, pelos fins do verão.

 

CLARA

 

Faz-nos a honra de ser uma das testemunhas?

 

PEDRO ALVES

 

Oh! isso é demais.

 

LUÍS

 

Desculpe-me, mas eu não posso. Vou fazer uma viagem.

 

CLARA

 

Até onde?

 

LUÍS

 

Pretendo abjurar em qualquer cidade mourisca e fazer depois a peregrinação da Meca. Preenchido este dever de um bom maometano irei entre as tribos do deserto procurar a exceção que não encontrei ainda no nosso clima cristão.

 

CLARA

 

Tão longe, meu Deus! Parece-me que trabalhará debalde.

 

LUÍS

 

Vou tentar.

 

PEDRO ALVES

 

Mas tenta um sacrifício.

 

LUÍS

 

Não faz mal.

 

PEDRO ALVES

 

(a Clara, baixo)

 

Está doido!

 

CLARA

 

Mas virá despedir-se de nós?

 

LUÍS

 

Sem dúvida. (baixo a Pedro Alves) Curvo-me ao vencedor, mas consola-me a idéia de que, contra as suas previsões, paga as despesas da guerra. (alto) V. Exa. dá-me licença?

 

CLARA

 

Onde vai?

 

LUÍS

 

Retiro-me para casa.

 

CLARA

 

Não fica para jantar?

 

LUÍS

 

Vou aprontar a minha bagagem.

 

CLARA

 

Leva a lembrança dos amigos no fundo das malas, não?

 

LUÍS

 

Sim, minha senhora, ao lado de alguns volumes de Alphonse Karr.

 

 

 

SEGUNDA PARTE

 

Na Corte

 

(Uma sala em casa de Pedro Alves.)

 

 

Cena I

 

CLARA, PEDRO ALVES

 

PEDRO ALVES

 

Ora, não convém por modo algum que a mulher de um deputado ministerialista vá à partida de um membro da oposição. Em rigor, nada há de admirar nisso. Mas o que não dirá a imprensa governista! O que não dirão os meus colegas da maioria! Está lendo?

 

CLARA

 

Estou folheando este álbum.

 

PEDRO ALVES

 

Nesse caso, repito-lhe que não convém...

 

CLARA

 

Não precisa, ouvi tudo.

 

PEDRO ALVES

 

(levantando-se)

 

Pois aí está; fique com a minha opinião.

 

CLARA

 

Prefiro a minha.

 

PEDRO ALVES

 

Prefere...

 

CLARA

 

Prefiro ir à partida do membro da oposição.

 

PEDRO ALVES

 

Isso não é possível. Oponho-me com todas as forças.

 

CLARA

 

Ora, veja o que é o hábito do parlamento! Opõe-se a mim, como se eu fosse um adversário político. Veja que não esta na câmara, e que eu sou mulher.

 

PEDRO ALVES

 

Mesmo por isso. Deve compreender os meus interesses e não querer que seja alvo dos tiros dos maldizentes. Já não lhe falo nos direitos que me estão confiados como marido...

 

CLARA

 

Se é tão aborrecido na câmara como é cá em casa, tenho pena do ministério e da maioria.

 

PEDRO ALVES

 

Clara!

 

CLARA

 

De que direitos me fala? Concedo-lhe todos quantos queira, menos o de me aborrecer; e privar-me de ir a esta partida, é aborrecer-me.

 

PEDRO ALVES

 

Falemos como amigos. Dizendo que desistas do teu intento, tenho dois motivos: um político e outro conjugal. Já te falei do primeiro.

 

CLARA

 

Vamos ao segundo.

 

PEDRO ALVES

 

O segundo é este. As nossas primeiras vinte e quatro horas de casamento, passaram para mim rápidas como um relâmpago. Sabes por quê? Porque a nossa lua-de-mel não durou mais que esse espaço. Supus que unindo-te a mim, deixasses um pouco a vida dos passeios, dos teatros, dos bailes. Enganei-me; nada mudaste em teus hábitos; eu posso dizer que não me casei para mim. Fui forçado a acompanhar-te por toda a parte, ainda que isso me custasse grande aborrecimento.

 

CLARA

 

E depois?

 

PEDRO ALVES

 

Depois, é que esperando ver-te cansada dessa vida, reparo com pesar que continuas na mesma e muito longe ainda de a deixar.

 

CLARA

 

Conclusão: devo romper com a sociedade e voltar a alongar as suas vinte e quatro horas de lua-de-mel, vivendo beatificamente ao lado um do outro, debaixo do teto conjugal...

 

PEDRO ALVES

 

Como dois pombos.

 

CLARA

 

Como dois pombos ridículos! Gosto de ouvi-lo com essas recriminações. Quem o atender, supõe que se casou comigo pelos impulsos do coração. A verdade é que me esposou por vaidade, e que quer continuar essa lua-de-mel, não por amor, mas pelo susto natural de um proprietário, que receia perder um cabedal precioso.

 

PEDRO ALVES

 

Oh!

 

CLARA 

 

Não serei um cabedal precioso?

 

PEDRO ALVES

 

Não digo isso. Protesto, sim, contra as tuas conclusões.

 

CLARA

 

O protesto é outro hábito do parlamento! Exemplo às mulheres futuras do quanto, no mesmo homem, fica o marido suplantado pelo deputado.

 

PEDRO ALVES

 

Está bom, Clara, concedo-te tudo.

 

CLARA

 

Obrigada!

 

PEDRO ALVES

 

Não se dirá que te contrariei nunca.

 

CLARA

 

A história há de fazer-te justiça.

 

PEDRO ALVES

 

Acabemos com isto. Estas pequenas rixas azedam-me o espírito, e não lucramos nada com elas.

 

CLARA 

 

Acho que sim. Deixe de ser ridículo, que eu continuarei nas mais benévolas disposições. Para começar, não vou à partida da minha amiga Carlota. Está satisfeito?

 

PEDRO ALVES

 

Estou.

 

CLARA

 

Bem. Não esqueça de ir buscar minha filha. É tempo de apresentá-la à sociedade. A pobre Clarinha deve estar bem desconhecida. Está moça e ainda no colégio. Tem sido um descuido nosso.

 

PEDRO ALVES

 

Irei buscá-la amanhã.

 

CLARA

 

Pois bem. (sai)

 

 

 

Cena II

 

PEDRO ALVES E UM CRIADO

 

PEDRO ALVES

 

Safa! Que maçada!

 

O CRIADO

 

Está aí uma pessoa que lhe quer falar.

 

PEDRO ALVES

 

Faze-a entrar.

 

 

 

Cena III

 

PEDRO ALVES, LUÍS DE MELO

 

PEDRO ALVES

                                                                                                           

Que vejo!

 

LUÍS

 

Luís de Melo, lembra-se?

 

PEDRO ALVES

 

Muito. Venha um abraço! Então como está? Quando chegou?

 

LUÍS

 

Pelo último paquete.

 

PEDRO ALVES

 

Ah! Não li nos jornais...

 

LUÍS

 

O meu nome é tão vulgar que facilmente se confunde com os outros.

 

PEDRO ALVES

 

Confesso que só agora sei que está no Rio de Janeiro. Sentemo-nos. Então andou muito pela Europa?

 

LUÍS

 

Pela Europa quase nada; a maior parte do tempo gastei em atravessar o Oriente.

 

PEDRO ALVES

 

Sempre realizou a sua idéia?

 

LUÍS

 

É verdade, vi tudo o que a minha fortuna podia oferecer aos meus instintos artísticos.

 

PEDRO ALVES

 

Que de impressões havia de ter! Muito turco, muito árabe, muita mulher bonita, não? Diga-me uma coisa, há também ciúmes por lá?

 

LUÍS

 

Há.

 

PEDRO ALVES

 

Contar-me-á a sua viagem por extenso.

 

LUÍS

 

Sim, com mais descanso. Está de saúde a senhora D. Clara Alves?

 

PEDRO ALVES

 

De perfeita saúde. Tenho muito que lhe dizer respeito ao que se passou depois que se foi embora.

 

LUIS

 

Ah!

 

PEDRO ALVES

 

Passei estes cinco anos no meio da mais completa felicidade. Ninguém melhor saboreou as delícias do casamento. A nossa vida conjugal pode-se dizer que é um céu sem nuvens. Ambos nos desvelamos por agradar um ao outro.

 

LUÍS

 

É uma lua-de-mel sem ocaso.

 

PEDRO ALVES

 

E lua cheia.

 

LUÍS

 

Tanto melhor! Folgo de vê-los felizes. A felicidade na família é uma cópia, ainda que pálida, da bem-aventurança celeste. Pelo contrário, os tormentos domésticos representam na terra o purgatório.

 

PEDRO ALVES

 

Apoiado!

 

LUÍS

 

Por isso estimo que acertasse com a primeira.

 

PEDRO ALVES

 

Acertei. Ora, do que eu me admiro não é do acerto, mas do modo por que de pronto me habituei à vida conjugal. Parece-me incrível. Quando me lembro da minha vida de solteiro, vida de borboleta, ágil e incapaz de pousar definitivamente sobre uma flor...

 

LUÍS

 

A coisa explica-se. Tal seria o modo por que o enredaram e pregaram com o competente alfinete no fundo desse quadro chamado — lar doméstico!

 

PEDRO ALVES

 

Sim, creio que é isso.

 

LUÍS

 

De maneira que hoje é pelo casamento?

 

PEDRO ALVES

 

De todo o coração.

 

LUÍS

 

Está feito, perdeu-se um folgazão, mas ganhou-se um homem de bem.

 

PEDRO ALVES

 

Ande lá. Aposto que também tem vontade de romper a cadeia do passado?

 

LUÍS

 

Não será difícil.

 

PEDRO ALVES

 

Pois é o que deve fazer.

 

LUÍS

 

Veja o que é o egoísmo humano. Como renegou da vida de solteiro, quer que todos professem a religião do matrimônio.

 

PEDRO ALVES

 

Escusa moralizar.

 

LUÍS

 

É verdade que é uma religião tão doce!

 

PEDRO ALVES

 

Ah!... Sabe que estou deputado?

 

LUÍS

 

Sei e dou-lhe os meus parabéns.

 

PEDRO ALVES

 

Alcancei um diploma na última eleição. Na minha idade ainda é tempo de começar a vida política, e nas circunstâncias eu não tinha outra a seguir mais apropriada. Fugindo às antigas parcialidades políticas, defendendo os interesses do distrito que represento, e como o governo mostra zelar esses interesses, sou pelo governo.

 

LUÍS

 

É lógico.

 

PEDRO ALVES

 

Graças a esta posição independente, constituí-me um dos chefes da maioria da câmara.

 

LUÍS

 

Ah! ah!

 

PEDRO ALVES

 

Acha que vou depressa? Os meus talentos políticos dão razão da celebridade da minha carreira. Se eu fosse uma nulidade, nem alcançaria um diploma. Não acha?

 

LUÍS

 

Tem razão.

 

PEDRO ALVES

 

Por que não tenta a política?

 

LUÍS

 

Porque a política é uma vocação e quando não é vocação é uma especulação. Acontece muitas vezes que, depois de ensaiar diversos caminhos para chegar ao futuro, depara-se finalmente com o da política para o qual convergem as aspirações íntimas. Comigo não se dá isso. Quando mesmo o encontrasse juncado de flores, passaria por ele para tomar outro mais modesto. Do contrário seria fazer política de especulação.

 

PEDRO ALVES

 

Pensa bem.

 

LUÍS

 

Prefiro a obscuridade ao remorso que me ficaria de representar um papel ridículo.

 

PEDRO ALVES

 

Gosto de ouvir falar assim. Pelo menos, é franco e vai logo dando o nome às coisas. Ora, depois de uma ausência de cinco anos parece que há vontade de passar algumas horas juntos, não? Fique para jantar conosco.

 

 

 

Cena IV

 

CLARA, PEDRO ALVES, LUÍS

 

PEDRO ALVES

 

Clara, aqui está um velho amigo que não vemos há cinco anos.

 

CLARA

 

Ah! O Sr. Luís de Melo!

 

LUÍS

 

Em pessoa, minha senhora.

 

CLARA

 

Seja muito bem-vindo! Causa-me uma surpresa agradável.

 

LUÍS

 

V. Exa. honra-me.

 

CLARA

 

Venha sentar-se. O que nos conta?

 

LUÍS

 

(conduzindo-a para uma cadeira)

 

Para contar tudo fora preciso um tempo interminável.

 

CLARA

 

Cinco anos de viagem!

 

LUÍS

 

Vi tudo quanto se pode ver nesse prazo. Diante de V. Exa. está um homem que acampou ao pé das pirâmides.

 

CLARA

 

Oh!

 

PEDRO ALVES

 

Veja isto!

 

CLARA

 

Contemplado pelos quarenta séculos!

 

PEDRO ALVES

 

E nós que o fazíamos a passear pelas capitais da Europa.

 

CLARA

 

É verdade, não supúnhamos outra coisa.

 

LUÍS

 

Fui comer o pão da vida errante dos meus camaradas árabes. Boa gente! Podem crer que deixei saudades de mim.

 

CLARA

 

Admira que entrasse no Rio de Janeiro com esse lúgubre vestuário da nossa prosaica civilização. Devia trazer calça larga, alfanje e burnous. Nem ao menos burnous! Aposto que foi Cádi?

 

LUÍS

 

Não, minha senhora; só os filhos de Islã têm direito a esse cargo.

 

CLARA

 

Está feito. Vejo que sacrificou cinco anos, mas salvou a sua consciência religiosa.

 

PEDRO ALVES

 

Teve saudades de cá?

 

LUÍS

 

À noite, na hora de repouso, lembrava-me dos amigos que deixara, e desta terra onde vi a luz. Lembrava-me do Clube, do teatro Lírico, de Petrópolis e de todas as nossas distrações. Mas vinha o dia, voltava-me eu à vida ativa, e tudo desvanecia-se como um sonho amargo.

 

PEDRO ALVES

 

Bem lhe disse eu que não fosse.

 

LUÍS

 

Por quê? Foi a idéia mais feliz da minha vida.

 

CLARA

 

Faz-me lembrar o justo de que fala o poeta de Olgiato, que entre rodas de navalhas diz estar em um leito de rosas.

 

LUÍS

 

São versos lindíssimos, mas sem aplicação ao caso atual. A minha viagem foi uma viagem de artista e não de peralvilho; observei com os olhos do espírito e da inteligência. Tanto basta para que fosse uma excursão de rosas.

 

CLARA 

 

Vale então a pena perder cinco anos?

 

LUÍS

 

Vale.

 

PEDRO ALVES

 

Se não fosse o meu distrito sempre quisera ir ver essas coisas de perto.

 

CLARA

 

Mas que sacrifício! Como é possível trocar os conchegos do repouso e da quietação pelas aventuras de tão penosa viagem?

 

LUÍS

 

Se as coisas boas não se alcançassem à custa de um sacrifício, onde estaria o valor delas? O fruto maduro ao alcance da mão do bem-aventurado a quem as huris embalam, só existe no paraíso de Maomé.

 

CLARA

 

Vê-se que chega de tratar com os árabes?

 

LUÍS

 

Pela comparação? Dou-lhe outra mais ortodoxa: o fruto provado por Eva custou-lhe o sacrifício do paraíso terrestre.

 

CLARA

 

Enfim, ajunte exemplo sobre exemplo, citação sobre citação, e ainda assim não me fará sair dos meus cômodos.

 

LUÍS

 

O primeiro passo é difícil. Dado ele, apodera-se da gente um furor de viajar, que eu chamarei febre de locomoção.

 

CLARA

 

Que se apaga pela saciedade?

 

LUÍS

 

Pelo cansaço. E foi o que me aconteceu: parei de cansado. Volto a repousar com as recordações colhidas no espaço de cinco anos.

 

CLARA

 

Tanto melhor para nós.

 

LUÍS

 

V. Exa. honra-me.

 

CLARA

 

Já não há medo de que o pássaro abra de novo as asas.

 

PEDRO ALVES

 

Quem sabe?

 

LUÍS

 

Tem razão; dou por findo o meu capítulo de viagem.

 

PEDRO ALVES

 

O pior é não querer abrir agora o da política. A propósito: são horas de ir à câmara; há hoje uma votação a que não posso faltar.

 

LUÍS

 

Eu vou fazer uma visita na vizinhança.

 

PEDRO ALVES

 

À casa do comendador, não é? Clara, o Sr. Luís de Melo faz-nos a honra de jantar conosco.

 

CLARA

 

Ah! Quer ser completamente amável.

 

LUÍS

 

V. Exa. honra-me sobremaneira... (a Clara) Minha senhora! (a Pedro Alves) Até logo, meu amigo!

 

 

 

Cena V

 

CLARA, PEDRO ALVES

 

PEDRO ALVES

 

Ouviu como está contente? Reconheço que não há nada para curar uma paixão do que seja uma viagem.

 

CLARA

 

Ainda se lembra disso?

 

PEDRO ALVES

 

Se me lembro!

 

CLARA

 

E teria ele paixão?

 

PEDRO ALVES

 

Teve. Posso afiançar que a participação do nosso casamento causou-lhe a maior dor deste mundo.

 

CLARA

 

Acha?

 

PEDRO ALVES

 

É que o gracejo era pesado demais.

 

CLARA

 

Se assim é, mostrou-se generoso, porque mal chegou, já nos veio visitar.

 

PEDRO ALVES

 

Também é verdade. Fico conhecendo que as viagens são um excelente remédio para curar paixão.

 

CLARA

 

Tenha cuidado.

 

PEDRO ALVES

 

Em quê?

 

CLARA

 

Em não soltar alguma palavra a esse respeito.

 

PEDRO ALVES

 

Descanse, porque eu, além de compreender as conveniências, simpatizo com este moço e agradam-me as suas maneiras. Creio que não há crime nisto, pelo que se passou há cinco anos.

 

CLARA

 

Ora, crime!

 

PEDRO ALVES

 

Demais, ele mostrou-se hoje tão contente como o nosso casamento, que parece completamente estranho a ele.

 

CLARA

 

Pois não vê que é um cavalheiro perfeito? Obrar de outro modo seria cobrir-se de ridículo.

 

PEDRO ALVES

 

Bem, são onze horas, vou para câmara.

 

CLARA

 

(da porta)

 

Volta cedo?

 

PEDRO ALVES

 

Mal acabar a sessão. O meu chapéu? Ah! (vai buscá-lo a uma mesa. Clara sai) Vamos lá com esta famosa votação.

 

 

 

Cena VI

 

LUÍS, PEDRO ALVES

 

PEDRO ALVES

 

Oh!

 

LUÍS

 

O comendador não estava em casa, lá deixei o meu cartão de visita. Aonde vai?

 

PEDRO ALVES

 

À câmara.

 

LUÍS

 

Ah!

 

PEDRO ALVES

 

Venha comigo.

 

LUÍS

 

Não se pode demorar alguns minutos?

 

PEDRO ALVES

 

Posso.

 

LUÍS

 

Pois conversemos.

 

PEDRO ALVES

 

Dou-lhe meia hora.

 

LUÍS

 

Demais o seu boleeiro dorme tão a sono solto que é uma pena acordá-lo.

 

PEDRO ALVES

 

O tratante não faz outra coisa.

 

LUÍS

 

O que lhe vou comunicar é grave e importante.

 

PEDRO ALVES

 

Não me assuste.

 

LUÍS

 

Não há de quê. Ouça, porém. Chegado há três dias, tive eu tempo de ir ontem mesmo a um baile. Estava com sede de voltar à vida ativa em que me eduquei e não perdi a oportunidade.

 

PEDRO ALVES

 

Compreendo a sofreguidão.

 

LUÍS

 

O baile foi na casa do colégio da sua enteada.

 

PEDRO ALVES

 

Minha mulher não foi por causa de um leve incômodo. Dizem que esteve uma bonita função.

 

LUÍS

 

É verdade.

 

PEDRO ALVES

 

Não achou a Clarinha uma bonita moça?

 

LUÍS

 

Se achei bonita? Tanto que venho pedi-la em casamento.

 

PEDRO ALVES

 

Oh!

 

LUÍS

 

De que se admira? Acha extraordinário?

 

PEDRO ALVES

 

Não, pelo contrário, acho natural.

 

LUÍS

 

Faço-lhe o pedido com franqueza; peço-lhe que responda com igual franqueza.

 

PEDRO ALVES

 

Oh! Da minha parte a resposta é toda afirmativa.

 

LUÍS

 

Posso contar com igual resposta da outra parte?

 

PEDRO ALVES

 

Se houver dúvida, aqui estou eu para pleitear a sua casa.

 

LUÍS

 

Tanto melhor.

 

PEDRO ALVES

 

Tencionávamos trazê-la amanhã cedo para casa.

 

LUÍS

 

Graças a Deus! Cheguei a tempo.

 

PEDRO ALVES

 

Com franqueza, causa-me com isso um grande prazer.

 

LUÍS

 

Sim?

 

PEDRO ALVES

 

Confirmaremos pelos laços do parentesco os vínculos da simpatia.

 

LUÍS

 

Obrigado. O casamento é contagioso, e a felicidade alheia é um estímulo. Quando ontem saí do baile trouxe o coração aceso, mas nada tinha assentado de definitivo. Porém tanto lhe ouvi falar de sua felicidade que não pude deixar de pedir-lhe me auxilie no intento de ser também feliz.

 

PEDRO ALVES 

 

Bem lhe dizia eu há pouco que havia de me acompanhar os passos.

 

LUÍS

 

Achei essa moça, que apenas sai da infância, tão simples e tão cândida, que não pude deixar de olhá-la como o gênio benfazejo da minha sorte futura. Não sei se ao meu pedido corresponderá à vontade dela, mas resigno-me às conseqüências.

 

PEDRO ALVES

 

Tudo será feito a seu favor.

 

LUÍS

 

Eu mesmo irei pedi-la à Sra. D. Clara. Se porventura encontrar oposição, peço-lhe então que interceda por mim.

 

PEDRO ALVES

 

Fica entendido.

 

LUÍS

 

Hoje que volto ao repouso, creio que me fará bem a vida pacífica, no meio dos afagos de uma esposa terna e bonita. Para que o pássaro não torne a abrir as asas, é preciso dar-lhe gaiola e uma linda gaiola.

 

PEDRO ALVES

 

Bem; eu vou para câmara e volto apenas acabada a votação. Fique aqui e exponha a sua causa à minha mulher que o ouvirá com benevolência.

 

LUÍS

 

Dá-me esperanças?

 

PEDRO ALVES

 

Todas. Seja firme e instante.

 

 

 

Cena VII

 

CLARA, LUÍS

 

LUÍS

 

Parece-me que vou entrar em uma batalha.

 

CLARA

 

Ah! não esperava encontrá-lo.

 

LUÍS

 

Estive com o Sr. Pedro Alves. Neste momento foi ele para a câmara. Ouça: lá partiu o carro.

 

CLARA

 

Conversaram muito?

 

LUÍS

 

Alguma coisa, minha senhora.

 

CLARA

 

Como bons amigos?

 

LUÍS

 

Como excelentes amigos.

 

CLARA

 

Contou-lhe a sua viagem?

 

LUÍS

 

Já tive a honra de dizer a V. Exa. que a minha viagem pede muito tempo para ser narrada.

 

CLARA

 

Escreva-a então. Há muito episódio?

 

LUÍS

 

Episódios de viagem, tão-somente, mas que trazem sempre a sua novidade.

 

CLARA

 

O seu escrito brilhará pela imaginação, pelos belos achados da sua fantasia.

 

LUÍS

 

É o meu pecado original.

 

CLARA

 

Pecado?

 

LUÍS

 

A imaginação.

 

CLARA

 

Não vejo pecado nisso. 

 

LUÍS

 

A fantasia é um vidro de cor, um óculo brilhante, porém mentiroso...

 

CLARA

 

Não me lembra de lhe ter dito isso.

 

LUÍS

 

Também eu não digo que V. Exa. mo tenha dito.

 

CLARA

 

Faz mal em vir do deserto, só para recordar algumas palavras que me escaparam há cinco anos.

 

LUÍS

 

Repeti-as como de autoridade. Não eram a sua opinião?

 

CLARA

 

Se quer que lhe minta, respondo afirmativamente.

 

LUÍS

 

Então deveras vale alguma coisa elevar-se acima dos espíritos vulgares e ver a realidade das coisas pela porta da imaginação?

 

CLARA

 

Se vale! A vida fora bem prosaica se lhe não emprestássemos cores nossas e não a vestíssemos à nossa maneira.

 

LUÍS

 

Perdão, mas...

 

CLARA

 

Pode averbar-me de suspeita, está no seu direito. Nós outras as mulheres, somos as filhas da fantasia; é preciso levar em conta que eu falo em defesa da mãe comum.

 

LUÍS

 

Está-me fazendo crer em milagres?

 

CLARA

 

Onde vê o milagre?

 

LUÍS

 

Na conversão de V. Exa.

 

CLARA

 

Não crê que eu esteja falando a verdade?

 

LUÍS

 

Creio que é tão verdadeira hoje, como foi há cinco anos, e é nisso que está o milagre da conversão.

 

CLARA

 

Pois será conversão. Não tem mais que bater palmas pela ovelha rebelde que volta ao aprisco. Os homens tomaram tudo e mal deixaram às mulheres as regiões do ideal. As mulheres ganharam. Para a maior parte o ideal da felicidade é a vida plácida, no meio das flores, ao pé de um coração que palpita. Elas sonham com o perfume das flores, com as escumas do mar, com os raios da lua e todo o material da poesia moderna. São almas delicadas, mal compreendidas e muito caluniadas.

 

LUÍS

 

Não defenda com tanto ardor o seu sexo, minha senhora. É de uma alma generosa, mas não de um gênio observador.

 

CLARA

 

Anda assim mal com ele?

 

LUÍS 

 

Mal por quê?

 

CLARA

 

Eu sei!

 

LUÍS

 

Aprendi a respeitá-lo, e quando assim não fosse, sei perdoar.

 

CLARA

 

Perdoar, como os reis, as ofensas por outrem recebidas.

 

LUÍS

 

Não, perdoar as próprias.

 

CLARA

 

Ah! Foi vítima! Tinha vontade de conhecer o seu algoz. Como se chama?

 

LUÍS

 

Não costumo a conservar tais nomes.

 

CLARA

 

Reparo uma coisa.

 

LUÍS

 

O que é?

 

CLARA

 

É que em vez de voltar mouro, voltou profundamente cristão.

 

LUÍS

 

Voltei como fui: fui homem e voltei homem.

 

CLARA

 

Chama ser homem o ser cruel?

 

LUÍS

 

Cruel em quê?

 

CLARA

 

Cruel, cruel como todos são! A generosidade humana não pára no perdão das culpas, vai até o conforto do culpado. Nesta parte não vejo os homens de acordo com o evangelho.

 

LUÍS

 

É que os homens que inventaram a expiação legal, consagram também uma expiação moral. Quando esta não se dá, o perdão não é um dever, porém uma esmola que se faz à consciência culpada, e tanto basta para desempenho da caridade cristã.

 

CLARA

 

O que é essa expiação moral?

 

LUÍS

 

É o remorso.

 

CLARA

 

Conhece tabeliães que passam certificados de remorso? É uma expiação que pode não ser acreditada e existir entretanto.

 

LUÍS

 

É verdade. Mas para os casos morais há provas morais.

 

CLARA

 

Adquiriu essa rigidez no trato com os árabes?

 

LUÍS

 

Valia a pena ir tão longe para adquiri-la, não acha?

 

CLARA

 

Valia.

 

LUÍS

 

Posso elevar-me assim ate ser um espírito sólido.

 

CLARA

 

Espírito sólido? Não há dessa gente por onde andou?

 

LUÍS

 

No Oriente tudo é poeta, e os poetas dispensam bem a glória de espíritos sólidos.

 

CLARA

 

Predomina lá a imaginação, não é?

 

LUÍS

 

Com toda a força do verbo.

 

CLARA

 

Faz-me crer que encontrou a suspirada exceção que... lembra-se?

 

LUÍS

 

Encontrei, mas deixei-a passar.

 

CLARA

 

Oh!

 

LUÍS

 

Escrúpulo religioso, orgulho nacional, que sei eu?

 

CLARA

 

Cinco anos perdidos!

 

LUÍS

 

Cinco anos ganhos. Gastei-os a passear, enquanto a minha violeta se educava cá num jardim.

 

CLARA

 

Ah!... viva então nosso clima!

 

LUÍS

 

Depois de longos dias de solidão, há necessidade de quem nos venha fazer companhia, compartir as nossas alegrias e mágoas, e arrancar o primeiro cabelo que nos alvejar.

 

CLARA

 

Há.

 

LUÍS

 

Não acha?

 

CLARA

 

Mas quando pensando encontrar a companhia desejada, encontra-se o aborrecimento e a insipidez encarnados no objeto da nossa escolha?

 

LUÍS

 

Nem sempre é assim.

 

CLARA

 

As mais das vezes é. Tenha cuidado!

 

LUÍS

 

Oh! por esse lado estou livre de errar.

 

CLARA

 

Mas onde está essa flor?

 

LUÍS

 

Quer saber?

 

CLARA

 

Quero, e também o seu nome.

 

LUÍS

 

O seu nome é lindíssimo. Chama-se Clara.

 

CLARA

 

Obrigada! E eu conheço-a?

 

LUÍS

 

Tanto como a si própria.

 

CLARA

 

Sou sua amiga?

 

LUÍS

 

Tanto como o é de si.

 

CLARA

 

Não sei quem seja.

 

LUÍS

 

Deixemos o terreno das alusões vagas; é melhor falar francamente. Venho pedir-lhe a mão de sua filha.

 

CLARA

 

De Clara!

 

LUÍS

 

Sim, minha senhora. Vi-a há dois dias; está bela como a adolescência em que entrou. Revela uma expressão de candura tão angélica que não pode deixar de agradar a um homem de imaginação, como eu. Tem além disso uma vantagem: não entrou ainda no mundo, está pura de todo contato social; para ela os homens estão na mesma plana e o seu espírito ainda não pode fazer distinção entre o espírito sólido e o homem do ideal. É-lhe fácil aceitar um ou outro.

 

CLARA

 

Com efeito, é uma surpresa com que eu menos contava.

 

LUÍS

 

Posso considerar-me feliz?

 

CLARA

 

Eu sei! Por mim decido, mas eu não sou a cabeça do casal.

 

LUÍS 

 

Pedro Alves já me deu seu consentimento.

 

CLARA

 

Ah!

 

LUÍS 

 

Versou sobre isso a nossa conversa.

 

CLARA

 

Nunca pensei que chegássemos a esta situação.

 

LUÍS

 

Falo como um parente. Se V. Exa. não teve bastante espírito para ser minha esposa, deve tê-lo pelo menos, para ser minha sogra.

 

CLARA

 

Ah!

 

LUÍS 

 

Que quer? Todos temos um dia de desencantos. O meu foi há cinco anos, hoje o desencantado não sou eu.

 

 

 

Cena VIII

 

LUÍS, PEDRO ALVES, CLARA

 

PEDRO ALVES

 

Não houve sessão: a minoria fez gazeta. (a Luis) Então?

 

LUÍS

 

Tenho o consentimento de ambos.

 

PEDRO ALVES

 

Clara não podia deixar de atender ao seu pedido.

 

CLARA

 

Peço-lhe que faça a felicidade dela.

 

LUÍS

 

Consagrarei nisso minha vida.

 

PEDRO ALVES

 

Por mim, hei de sempre ver se posso resolvê-lo a aceitar um distrito nas próximas eleições.

 

LUÍS

 

Não será melhor ver primeiro se o distrito me aceitará?

 

 

 

FIM